Uma história de amor

Cresci num ambiente onde a violência doméstica fazia parte do dia a dia. 

Desde muito pequena, infelizmente, o álcool circulava nos meios onde o meu pai trabalhava e isso – sei-o hoje – toldava-lhe a mente ao ponto de fazer o inimaginável à minha mãe, inclusivamente à frente dos seus filhos pequenos. Mas esta não é uma história só de dor. É, acima de tudo, uma história de perdão e de como o amor de Deus se manifestou. 

Tenho uma memória muito antiga das experiências e vivências mais marcantes da minha vida. Lembro-me bem da casa onde vivia quando era pequenina, de brincar na rua com os amiguinhos, de querer ser como o meu irmão – queria ser mais velha, usar calças e bonés, jogar ao berlinde e correr atrás de uma bola. Lembro-me também que o trabalho do meu pai o levava a passar muitos dias fora e, quando estava em casa, trazia os amigos e as garrafas. Estas garrafas, que circulavam por horas, transformavam-no em alguém de quem eu tinha medo, sobretudo quando começou a tornar-se violento – com os filhos, apenas verbalmente, com a minha mãe também fisicamente. 

Rapidamente, o álcool passou a fazer parte íntima das rotinas do meu pai e aí tudo se tornou mais negro e ameaçador nas nossas vidas. Foram muitos os dias e longas as noites de discussões, de dor, de lágrimas, de sofrimento, de – perdoem-me a palavra feia – pancada. E de impotência da minha parte por não poder fazer nada que impedisse tudo isto de acontecer. Queria proteger a minha mãe no alto dos meus quatro ou cinco anos, mas tudo o que eu podia fazer era chorar agarrada a ela. E rezar. Tive a sorte de a minha avó materna, um anjo na minha vida e que era o meu porto seguro, me ensinar a rezar e a confiar em Deus. Os longos verões passados na aldeia eram também momentos de idas à missa, de conversas longas sobre Jesus, sobre o Padre Pio e Santa Teresinha, Nossa Senhora, entre outros. Foi graças à minha avó que tive catequese e que fiz a primeira comunhão. 

Lembro-me de ser pequena e não compreender muito bem o que se dizia na missa, mas já olhava para Nossa Senhora e para Jesus na Cruz e pedia ajuda, pedia protecção e acreditava piamente que seria ouvida. Desde tenra idade que os meus pedidos de oração se focavam na minha querida mãe – pedia que ela conseguisse um bom emprego e independência, para poder seguir com a sua vida, longe de tudo aquilo. Agradecia sempre por esta presença divina que nos dá forças para continuar e para superar os desafios da vida. Falava com o meu anjo da guarda todos os dias. E confiava. Esta é das mais belas histórias que tenho em como os nossos pedidos são ouvidos. No momento certo, a minha mãe conseguiu um bom emprego e, com a ajuda dos meus avós, conseguiu sair daquela casa e arranjar um lar sereno para todos nós. Nos anos 80 não era fácil uma mulher avançar para um divórcio, mas a minha querida mãe, que se encolhia de medo perante o meu pai, ganhou força e coragem para se divorciar e seguir em frente. E ainda que com altos e baixos neste relacionamento que ainda demorou algum tempo a sarar, conseguiu afastar-se e recomeçar. 

E o meu pai? Pode parecer estranho a alguns amar-se um agressor. Mas ele era o meu pai e o que eu queria era a cura dele. Os meus pedidos focaram-se nele. E, com a graça de Deus, ele mais tarde deixou o álcool e com esse afastamento surgiu um novo homem, por vezes duro e mandão, mas que procura ajudar o outro, que se envolve em causas sociais e que, acredito, quer expiar os seus pecados e ser um homem melhor. 

Mais tarde foi o meu pai quem ajudou a minha mãe em alturas difíceis da vida dela e que esteve presente quando viveu as maiores perdas. 

Hoje, mais de 30 anos depois, posso dizer que são amigos. Como aprendemos com a leitura da Bíblia, são os pecadores que mais precisam de ajuda e do nosso amor, por isso, quero acreditar que o amor de Deus, na altura certa, o ajudou a sair daquele precipício e a ser um homem melhor. 

Sei que nem todas as histórias de violência têm este desfecho. Sei que há histórias tão mais duras do que a minha e o que peço, a todos que possam ler este texto, é que orem por essas pessoas: pelas vítimas para que tenham como afastar-se e proteger-se no abraço de Deus e pelos agressores para que sintam o amor nos seus corações, para que sejam invadidos pelo Espírito Santo. Porque um coração inundado com a Graça de Deus, é um coração curado. E porque não há força maior do que o amor divino que nos incita a sermos melhores. Porque Ele é o caminho, a verdade, a vida… e também a cura.

Testemunho partilhado anónimamente

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